Descrição
Prefácio
Ensinar história da África e dos afrodescendentes conforme proposto pela Lei n. 10.639 de 2003 tem sido um desafio complexo para professores de história nas escolas, assim como para os encarregados da formação dos futuros docentes nas universidades. Os obstáculos para a sua efetiva implementação são diversos, conforme apresentam os autores desta obra, com destaque às questões relacionadas à produção de uma historiografia escolar para o novo currículo e para integrar as pesquisas acadêmicas. Trata-se de uma proposta complexa, que, sob uma aparente simplicidade, expressa oficialmente uma inovação curricular do ensino de história e envolve compromissos de diferentes naturezas quanto às transformações da educação escolar e universitária em processo nas últimas décadas. Professores e alunos passaram a vivenciar, de diferentes formas, um complexo projeto intercultural e ético-cultural.
Um primeiro aspecto a ser destacado sobre a inovação da proposta articula-se à sua origem curricular relacionada aos agentes envolvidos no processo de construção da Lei n. 10.639/2003. A temática da história da África e da cultura dos afrodescendentes foi introduzida no currículo nacional, diferentemente de outros conteúdos estabelecidos tradicionalmente a partir da criação do Ministério da Educação e Saúde, em 1930, que eram propostos por intelectuais em articulação com técnicos educacionais vinculados a setores políticos oficiais. Essa proposta curricular foi fruto de intensa e prolongada demanda de um movimento social – o movimento negro –, que obteve apoio político em um momento específico da história da democracia (ou democratização) brasileira. E, com apoio de organizações partícipes da luta antirracista em escala nacional e internacional, esse projeto passou a contar com adesões de intelectuais e de educadores no decorrer de um processo, nem sempre constante e linear, para ser efetivado nas diferentes salas de aula nas diversas regiões brasileiras.
Com base nas várias pesquisas realizadas e então apresentadas nesta obra, há uma série de entraves e dificuldades para se efetivar um currículo inovador, constituído sobretudo por uma complexidade epistemológica para além do ensino de história, que atinge as diversas disciplinas escolares.
Essas disciplinas, é importante destacar, têm sido constituídas a partir do século XIX com base em fundamentos de um currículo humanístico de caráter científico em constante confronto com currículos que se apoiam em concepções religiosas do humanismo clássico. E, no atual confronto do fim do século XX e início do XXI, o novo paradigma curricular humanístico propõe categoricamente uma revisão dos fundamentos tradicionais das disciplinas escolares quanto aos critérios de seleção de seus conteúdos e métodos, além de se situar historicamente na constituição do conhecimento escolar para um público complexo e diversificado, composto de alunos mestiços, brancos, negros, indígenas, asiáticos e de diferentes condições sociais e econômicas.
Desse modo, torna-se essencial uma reflexão sobre o objetivo central proposto pela Lei n. 10.639/2003 e, particularmente, sobre aquilo que representa o ensino da história da África e da cultura dos afrodescendentes: o combate ao racismo em suas diversas manifestações no presente e no passado e, evidentemente, como estes se relacionam com as expectativas para o futuro da nossa sociedade.
Os enfrentamentos para se debater a respeito do racismo na escola têm sido, no entanto, vários, especialmente por parte dos setores que os sustentam, mas negam sua existência ou permanência histórica nas relações sociais brasileiras. Afinal, existe racismo no Brasil? Indagam setores das elites brasileiras contrários à lei e bastante acomodados e tranquilos com a brilhante fórmula proporcionada pela teoria da democracia racial brasileira. Graças ao benefício de generosas bolsas de estudos governamentais, é comum a presença de aproximadamente dois ou quatro alunos negros ou mestiços em salas de aula de escolas particulares frequentadas pelos filhos brancos. Há os que afirmem que o racismo é uma mera “ilusão”, que não existe nenhuma justificativa para cotas raciais promovendo estudos universitários para esses grupos sociais.
Nesse contexto, o combate ao racismo na sociedade brasileira é tarefa complexa que pode ser constatada nas pesquisas realizadas pelos autores deste livro com alunos de diferentes escolas e cidades brasileiras. Os autores confirmam, ainda, que abordar o tema envolve desmascarar as várias faces do racismo no currículo oculto do cotidiano escolar.
O objetivo central proposto pela Lei n. 10.639 conduz a mudanças significativas quanto aos conteúdos tradicionais, conforme apresenta o documento das diretrizes nacionais para a educação das relações étnico-raciais de 2003. Torna-se fundamental introduzir estudos sobre as relações étnico-raciais no decorrer da história tanto africana como brasileira e a valorização da identidade negra na construção da história e da vida cultural da África e do Brasil, assim como da história mundial, da Antiguidade ao período contemporâneo do capitalismo internacional. E esse objetivo central para a história estende-se para as demais disciplinas, como apresentam os autores desta obra.
Introduzir novos conteúdos com novos sujeitos históricos é um grande desafio na história do ensino escolar. Os conteúdos históricos devem ser necessariamente revistos dentro de parâmetros que possam estabelecer a permanência de conteúdos tradicionais, apresentando novos sujeitos e acontecimentos em diferentes espaços continentais e em meio a diversas articulações e estratégias de vida econômica, política e cultural na constituição da nação.
Nessa perspectiva, currículos escolares e acadêmicos precisam de alterações para que professores possam ensinar história afro-brasileira com base em uma produção científica acadêmica articulada às práticas pedagógicas.
Afinal, o que se entende por história da África? Devemos, sobretudo, como educadores e historiadores, estabelecer parâmetros para selecionar as sociedades africanas a serem estudadas, bem como momentos históricos mais significativos de diferentes povos até hoje “esquecidos” pela produção eurocêntrica. Qual o significado em conhecer a Antiguidade africana limitada ao Egito e suas pirâmides junto ao rio Nilo e não estender os estudos sobre as sociedades em torno do rio Níger, do Império de Gana ou de Mali, com suas riquezas minerais e a civilização Ioruba caracterizada por sua intensa urbanização. Por que não estudar o processo de islamização de muitos povos africanos, além de suas religiões tradicionais que chegaram sob diferentes formas e rituais e se espalharam em nosso território? Como foi o processo de colonização africana e a sua independência no século XX?
Da mesma forma, temos que nos deter sobre os estudos de africanos escravizados no nosso território, e igualmente em todo o continente americano. Acompanhar a vida dos afrodescendentes no tempo da escravidão e no período pós-abolição significa uma oportunidade de conhecer e aprofundar estudos da nossa história do Brasil, sempre pouco prestigiada nos currículos escolares e revelada aos pedaços, de maneira incompleta. Podemos nos debruçar sobre conteúdos que abordam a cultura brasileira e sua riqueza artística e a complexa religiosidade em todas as suas manifestações, do candomblé ao cristianismo.
A seleção de conteúdos é sem dúvida tema complexo e fascinante, que deve ser intensamente debatido, mas, no processo de escolarização desses novos saberes, existe necessariamente o repensar sobre a questão do método! E sobre esse aspecto esta obra nos oferece o problema da interdisciplinaridade. Conteúdos e métodos não se separam para a efetivação da interdisciplinaridade.
Ensinar temas novos e ideologicamente complexos exige um aprofundamento metodológico para se constituir em práticas de sala de aula. A interdisciplinaridade ocorre apenas sob uma cuidadosa metodologia em torno dos conceitos básicos a serem estabelecidos em comum, conforme indicam as pesquisas, e essa articulação se faz necessariamente em torno da problemática do racismo e do preconceito racial. Desse modo, torna-se viável a integração de conteúdos de história e biologia, literatura e artes, geografia e política, estatística e história social do trabalho, ética e história política da escravidão, do apartheid ou da história do encarceramento e assassinatos de jovens das periferias das nossas cidades. O método de ensino exige uma rigorosa seleção do tema e sua problematização, bem como das fontes a serem escolhidas ou pesquisadas pelos alunos, e, nesse aspecto, trata-se da introdução do método dialético ou do dialógico freiriano: da delimitação e problematização do tema, da abordagem específica de cada disciplina e da diversidade de materiais a serem disponibilizados no processo de aprendizagem.
O tempo escolar, os conteúdos e os métodos de aprendizagem são inovadores para atender aos objetivos propostos pela Lei n. 10.639/2003, e esta obra explicita que um ensino de história fundamentado na diversidade e na pluralidade étnica e cultural continuará a enfrentar desafios teóricos, mas também políticos, pela essência revolucionária que representa na história dos currículos no Brasil.
Circe Fernandes Bittencourt
Universidade de São Paulo
Universidade Federal de São Paulo
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